Por Frei Beto [Quarta-Feira, 18 de Fevereiro de 2009 às 12:37hs]
De uma carta, recém-divulgada, de Dom Helder Câmara (1909‑1999), arcebispo de Olinda e Recife, datada de 27/28 de maio de 1969 e endereçada a seus amigos e amigas, a quem chamava de “família mecejanense” (Mecejana é o distrito de Fortaleza no qual ele nasceu):
“De repente, às 13h30 me chega o boato de que o padre Antônio Henrique havia sido assassinado. Procura daqui, procura dali, ele foi identificado no necrotério de Santo Amaro, onde dera entrada como cadáver desconhecido.
“Estaria com sinais de sevícias incríveis: três balas na cabeça, uma instalada na garganta, sinais evidentes de que foi amarrado pelos braços e pelo pescoço, e arrastado... 28 anos de idade, três anos de sacerdote. Crime: trabalhar com estudantes e ser da linha do Arcebispo.
“Coube-me procurar os velhos pais e dar-lhes a notícia terrível.
“No necrotério – onde ficamos até 19h, quando o cadáver foi liberado pelos médicos legistas – vivi uma avant-première de minha própria morte. Burburinho na sala. Gente chegando de todos os cantos. A imprensa escrita, falada, teve ordem de ignorar o acontecimento, mas demos avisos a todas as paróquias, por telefone e recados pessoais.
“Levei-o para a matriz do Espinheiro. (...)
“Na primeira concelebração, às 21h, tínhamos mais de 40 sacerdotes, e a igreja, enorme, estava transbordante de jovens.
“Dei uma tríplice palavra:
Palavra de fé, aos velhos Pais, esmagados de dor;
Palavra de esperança aos jovens com quem ele trabalhava; assumi o compromisso de que eles não ficariam órfãos;
Aos fiéis que enchiam o templo – mais uma vez a imprensa escrita e falada tinha ordem para recusar até o aviso pago de falecimento. Pedi que ajudassem a espalhar que às 9h haverá nova concelebração, saindo o enterro, às 10h, para o cemitério da Várzea, que é o cemitério da família.
“Li, então, a nota, assinada pelo Governo Colegiado, nota que a imprensa não divulgará, mas que nós tentaremos espalhar por toda a cidade, pelo País e... pelo Mundo.”
Faz, pois, 40 anos que padre Henrique Pereira Neto foi assassinado no Recife.
O coordenador
Conheci Dom Helder Câmara – cujo centenário de nascimento ele teria comemorado no último dia 2 de fevereiro – quando era bispo auxiliar do Rio de Janeiro, nos anos 60. Homem de muitos talentos e tarefas, ocupava-se também da Ação Católica, movimento que agrupava o chamado A, E, I, O e U (JAC, JEC, JIC, JOC e JUC). Eu participava da direção nacional da JEC – Juventude Estudantil Católica. Dom Helder nos coordenava, cuidava de nos matricular numa escola, com bolsa de estudos, e de nos assegurar recursos para o trabalho, como passagens aéreas que possibilitavam aos dirigentes do movimento viajar por todo o país. Graças ao prestígio dele, as portas se abriam.
Embora ele nos assegurasse o “atacado”, às vezes padecíamos no “varejo”. Morávamos em Laranjeiras (12 rapazes da JEC e da JUC – Juventude Universitária Católica), num apartamento de três quartos, verdadeira república da pindaíba! Ali, com frequência se hospedavam os líderes estudantis Betinho, de Minas, e José Serra, de São Paulo. Tínhamos recursos para viajar e escritório bem montado na rua Miguel Lemos, em Copacabana, mas nem sempre para a voracidade de nosso apetite juvenil...
Na época, o governo Kennedy, preocupado com a penetração do comunismo na América Latina, criou o programa chamado “Aliança para o Progresso”: doava leite e queijo, em caixas de papelão, para os pobres do Brasil. Parte da cota da Igreja ia para a nossa alimentação. Como as caixas ficavam meses no porto, umedeciam e o alimento se deteriorava. Tivemos sérios problemas de saúde por comer o queijo do Kennedy e beber o leite da Jaqueline...
O empreendedor
Além dos anos em que fiquei na direção da Ação Católica (1962-1964), convivi com Dom Helder no último período da vida dele. Anualmente eu participava, no Recife, da Semana Teológica promovida pelo grupo Igreja Nova. Nunca deixava de visitá-lo na igreja das Fronteiras, onde residia.
Homem pequeno e frágil, Dom Helder tinha características curiosas: quase não se alimentava. Todos diziam que ele comia feito passarinho. Também dormia pouco, tinha um horário estranho de sono: se deitava por volta de 11h, levantava às duas da madrugada, sentava numa cadeira de balanço e se entregava à oração. Era, como ele dizia, seu “momento de vigília”. Rezava até as quatro, dormia mais uma hora, hora e meia, e levantava para celebrar missa e começar seu dia.
Nos anos 60, Dom Helder encabeçava, no Rio, a Cruzada São Sebastião, projeto de desfavelização criado por ele. Malgrado a meritória intenção de propiciar aos mais pobres condições dignas de moradia, não deu certo: sem renda suficiente ou desempregados, moradores de favela eram transferidos para um apartamento que tratavam de sublocar; ou arrancavam a banheira, a pia, a torneira, para fazer dinheiro e comer.
Como Dom Helder obtinha recursos? Havia um programa de grande sucesso na TV, no qual sorteava-se uma pessoa da plateia, colocava-a numa cabine fechada, a partir da qual a escolhida não conseguia enxergar nada do que se passava fora. O auditório, repleto de prendas: carro, televisor, liquidificador, geladeira, relógio, pinça, cortador de unhas... uma porção de objetos.
Dom Helder recebeu convite do patrocinador do programa para perguntar ao seu Joaquim, operário sorteado: “O senhor troca isto por aquilo?” Joaquim não tinha ideia do que estava sendo proposto, cabia-lhe responder sim ou não. Isso umas sete ou oito vezes, até que, cessada a pergunta, o objeto da última troca era o prêmio merecido.
O auditório, na torcida pelo operário, lamentou quando seu Joaquim deixou de ganhar um carro por preferir, jogando no escuro, um abridor de latas. O apresentador lamentou ao entregar-lhe o prêmio: “O senhor teve a oportunidade de ganhar este carro ou aquela geladeira, mas insistiu no abridor de latas... Queremos agradecer, em nome de nossos patrocinadores, a presença de Dom Helder; e aqui vai um cheque para as obras da Cruzada São Sebastião”.
Dom Helder, gênio da comunicação, virou-se e propôs: “Seu Joaquim, você troca isto (o cheque) por este abridor?” E entregou o cheque ao operário!
No dia seguinte, na sede da Ação Católica, comentamos com ele: “Mas Dom Helder, o senhor abriu mão do dinheiro da Cruzada, uma contribuição importante! Como vai obter igual valor?”. Ele retrucou: “Ah... vocês não têm ideia: o que perdi no cheque ganhei em publicidade. Maiores recursos virão”.
O articulador
Homem de mil atividades, dotado de profundo senso crítico, Dom Helder tinha o dom de dialogar com qualquer pessoa, de qualquer nível. Figura muito carismática, difícil alguém considerá-lo inimigo depois de falar pessoalmente com ele, ainda que continuasse a discordar de suas ideias.
Espírito gregário, onde Dom Helder chegasse juntava gente em torno dele. Foi quem criou a CNBB, inventando as conferências episcopais, e o Celam, que é o Conselho dos Bispos da América Latina. Todos esses organismos que, de certa forma, descentralizam a Igreja romana, saíram da cabeça do bispo que, para azar dos militares golpistas, virou arcebispo exatamente em 1964. O papa o nomeou para São Luís e, dias depois, o transferiu para a arquidiocese de Olinda e Recife, na qual ele permaneceu até falecer.
O agitador
Dom Helder despontou, em 1972, como forte candidato ao Prêmio Nobel da Paz. Hoje sabemos que não ganhou o prêmio por duas razões: primeiro, pressão do governo Médici. A ditadura se veria fortemente abalada em sua imagem exterior caso ele fosse laureado. Mesmo dentro do Brasil, Dom Helder era considerado persona non grata. Censurado, nada do que o “arcebispo vermelho” falava era reproduzido ou noticiado pela mídia de nosso país.
A outra razão: ciúmes da Cúria Romana. Esta considerava uma indelicadeza, por parte da comissão norueguesa do Nobel da Paz, conceder a um bispo do Terceiro Mundo um prêmio que deveria, primeiro, ser dado ao papa...
Nos anos 70, ele era a única figura brasileira a competir, fora do país, com o prestígio do Pelé. Aonde ia, lotava auditórios. Tamanho o carisma dele que, em 1971, em Paris, convidado a falar num auditório em que cabiam 2 mil pessoas, tiveram que transferi-lo para o Palácio de Esportes, que comporta 12 mil.
Um dia, o governo militar, preocupado com a segurança do arcebispo de Olinda e Recife, temendo que algo acontecesse a ele e a culpa recaísse sobre a ditadura, enviou delegados da Polícia Federal para lhe oferecer um mínimo de proteção. Disseram-lhe: “Dom Helder, o governo teme que algum maluco ameace o senhor e a culpa recaia sobre o regime militar. Estamos aqui para lhe oferecer segurança”. Dom Helder reagiu: “Não preciso de vocês, já tenho quem cuide de minha segurança”. “Mas, Dom Helder, o senhor não pode ter um esquema privado. Todos que têm serviço de segurança precisam registrá-lo na Polícia Federal. Esta equipe precisa ser de nosso conhecimento, inclusive devido ao porte de armas. O senhor precisa nos dizer quem são as pessoas que cuidam da sua segurança”. Dom Helder retrucou: “Podem anotar os nomes: são três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.
O denunciador
Dom Helder morava numa casa modesta ao lado da igreja das Fronteiras. Frequentemente, as pessoas que tocavam a campainha eram atendidas pelo próprio arcebispo. Certa noite, a polícia fez uma batida numa favela do Recife, em busca do chefe do tráfico de drogas. Confundiu um operário com o homem procurado. Levou-o para a delegacia e passou a torturá-lo. A lógica da polícia era esta: se o cara apanha e não fala é porque é importante, treinado para guardar segredos. Os vizinhos e a família, desesperados, ficaram em volta da delegacia ouvindo os gritos do homem. Até que alguém teve a ideia de sugerir que a esposa do operário recorresse a Dom Helder.
A mulher bateu na igreja das Fronteiras: “Dom Helder, pelo amor de Deus, vem comigo porque lá na delegacia do bairro estão matando meu marido de pancadas”. O prelado a acompanhou. Ao chegar lá, o delegado ficou assustadíssimo: “Eminência, a que devo a honra de sua visita a esta hora da noite?” Dom Helder explicou: “Doutor, vim aqui porque há um equívoco. Os senhores prenderam meu irmão por engano”. “Seu irmão?!” “É, fulano de tal – deu o nome – é meu irmão.” “Mas, Dom Helder”, reagiu o delegado, “o senhor me desculpe, mas como podia adivinhar que é seu irmão. Os senhores são tão diferentes!”. Dom Helder se aproximou do ouvido do policial e sussurrou: “É que somos irmãos só por parte de Pai”. “Ah, entendi, entendi.” E liberou o homem.
Essas as tiradas de Dom Helder, capaz de jogadas proféticas que provocavam certa ciumeira entre os bispos. Ele tinha muitos aliados no episcopado, mas também quem invejasse seu prestígio mundial.
Durante o tempo em que estive na prisão, Dom Helder moveu intensa campanha no exterior de denúncia da ditadura brasileira. O governador de São Paulo, Abreu Sodré, tentou criminalizá-lo. Alegava ter provas de que Dom Helder era financiado por Cuba e Moscou. Alguns bispos ficavam sem saber como agir, como foi o caso do cardeal de São Paulo, Dom Agnelo Rossi, amigo do governador e de Dom Helder. Não foi capaz de tomar uma posição firme na contenda. Depois a denúncia caiu no vazio, não havia provas, apenas recortes de jornais.
Incomodava ao governo ver desmoralizada, pelo discurso de Dom Helder, a imagem que a ditadura queria projetar do Brasil no exterior, negando torturas e assassinatos. Ele sempre ressaltava que, se o governo brasileiro quisesse provar que ele mentia, então abrisse as portas do país para que comissões internacionais de direitos humanos viessem investigar, como fez a ditadura da Grécia. A ditadura grega era militar, mas abriu as portas para a investigação, o que o governo brasileiro, evidentemente, nunca fez.
Se nós, hoje, na Igreja, falamos de direitos humanos, especificamente a Igreja do Brasil, que tem uma pauta exemplar de defesa desses direitos apesar de todas as contradições, isso se deve ao trabalho de Dom Helder. Nenhum episcopado do mundo tem agenda semelhante à da CNBB na defesa dos direitos humanos. A começar pelos temas anuais da Campanha da Fraternidade: idoso, deficiente, criança, índio, vida, segurança etc. Isso é realmente um marco, algo já sedimentado. Também as Semanas Sociais, que as dioceses, todos os anos, promovem pelo Brasil afora, favorecem a articulação entre fé e política, sem ceder ao fundamentalismo.
Dom Helder sempre dizia: “Quando falo dos famintos, todos me chamam de cristão; quando falo das causas da fome, me chamam de comunista”. Isso demonstra bem o incômodo que causava. Não era um bispo que falava apenas de quem passa fome, mas também das causas da fome e da miséria, o que incomodava o sistema que se recusa a tratar as causas da miséria, porque fazem parte de sua própria lógica.
Frei Beto
Revista Forúm ed. 71
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